segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Mesmo que chova

Toda a cidade estava banhada. O dia havia passado chuvoso, sem trégua alguma. Todos exercitaram suas sombrinhas, um vai-e-vem de guarda-chuvas de todas as cores, tamanhos e materiais. A cidade surpreendia mais uma vez, a tempestade que caia era prevista para dias depois. São Paulo não poderia ser mais caótica, mas para Elisa, a Maravilha de Concreto era apenas incompreendida. 

Elisa seguia de trem rumo sua casa em uma sexta-feira qualquer... Sorria, perdida em pensamentos. Com os pés molhados, segurando vários livros nos braços e uma enorme bolsa, após um dia de trabalho e algumas voltas pelos sebos do centro da cidade. Ela estava satisfeita, havia encontrado alguns livros que procurava há tempos.

Seu refúgio era as letras e seu defensor o concreto. A megalópole que antes assustou os migrantes era irmã de Elisa. A solidão forjada por redomas de caracteres lhe trancafiava em um mundo sempre seguro. Estivesse ela sentada no ônibus ou em pé, aguardando na fila do supermercado ou na fila do banco. Distraída, perdendo sempre a vez de ser atendida no hospital...

Lia os russos, os argentinos, os ingleses, os franceses, amava Amado, Lispector e Queirós. Não permitia que uma história lhe cruzasse a vista sem tocar o coração. Abraçada a um livro que lhe acompanhava há uma semana, meditava Elisa em como despedir-se dele. Um momento sempre estranho, excitação com pitadas de medo. Cinco páginas a separavam do fim. Pensava em fechar o livro e ela mesma imaginar o desfecho, mas sempre se compadecia do autor. Ele era o primeiro, ela apenas co-autora. Terminaria... Torcendo a cada frase para que o autor não revelasse tudo, que deixasse enigmas para ela, lacunas em que pudesse pensar e sempre tirar novas conclusões.

Terminou de ler a história e por instante sentiu-se oca, sem saber o que fazer. O MP4 havia descarregado, não teria a companhia de James Blunt ou Adele. E começar um novo texto talvez fosse impossível, ainda estava demasiadamente ligada ao homem do subsolo.

- Ele está melhor em Os Demônios, você não acha? – Foi o que perguntou um rapaz que havia se sentado ao lado de Elisa na estação seguinte a que ela embarcou. Pela primeira vez ela prestou atenção nele, lhe olhou assustada. Alguém quebrava o seu muro e se apropriava de personagens seus.

- Não conheço este título dele e não tenho dúvidas, o título melhor é Crime e Castigo. Respondeu ela de súbito, um pouco evasiva, talvez tentando finalizar ali a conversa.

- Talvez, ainda assim, Os Demônios é melhor que Memórias do Subsolo, ainda que este seja muito bom. – O rapaz queria virar outras páginas e nem mesmo a timidez de Elisa poderia detê-lo. Fez perguntas a fim de conhecê-la, contou sua vida a fim de doar-se. Sorrateiro, fez parte primeiro das coisas que faziam parte da vida dela, para apenas depois fazer parte da vida de Elisa.

O dia chuvoso no coletivo foi o ponto de partida para que a cidade ficasse ainda mais bonita, os versos menos utópicos e as paredes cinzas - que antes fomentava solidão – tornassem cenários. A cada capítulo a vida dos dois se somavam. Perceberam que era mais prazeroso andar acompanhado, dividir constatações e conhecer novos ponto de vista. E mesmo que chovesse, tudo seria diferente. Não tardou para que partilhassem a mesma estante. 

IMAGEM: http://saomiguelcomunidade.files.wordpress.com/2011/08/casalsentadoapreciandoachuva.jpg

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