Olho no relógio e percebo que estou mais uma vez atrasado. Corro ao banheiro para tomar um banho rápido. A manhã está fria e sem dúvida meu corpo preferiria estar no calor dos lençóis ao enfrentar a água do chuveiro. Abro o registro e um jato de água fria encontra meu corpo.
Passado o susto constato que o chuveiro está queimado. Volto para o quarto na gana de me vestir o mais rápido possível. Quanto ao banho? Hoje usarei muito desodorante... Mas acabo de lembrar que esqueci de comprar, acabou!
Já devidamente vestido, pego uma maçã para comer pelo caminho. No portão de casa percebo que estou esquecendo o bilhete para pagar a condução, volto para pegá-lo. É neste momento que passa um coletivo relativamente vazio. Chego no ponto e o ônibus que passa
está completamente cheio, mas heroicamente consigo embarcar. Na expectativa de encontrar o interior do veículo vazio, tento me aproximar, mas por vezes minha enorme mochila me impede.
Pensando bem, acho que esqueci um livro em cima da mesa, droga!
Uma senhora com cara de brava, em pé próxima ao acento preferencial (onde dois jovens namoram) me acerta com o cotovelo quando passo. Uma moça pisa no meu pé.
Enfim chego ao terminal de ônibus. Agora preciso embarcar no trem para prosseguir com a viajem. Abre a porta do coletivo e todos correm como loucos para desembarcar. Minha mochila cai no chão e é pisada por alguns, mas consigo recuperar. Meu rosto está vermelho e mesmo com o tempo frio estou sentindo calor.
Junto com a multidão subo as escadas correndo rumo a estação. O trem chega. Não consigo lugar para sentar, o vagão está lotado! São dezoito estações até o fim da linha, acredito que duas estações antes do final haverá lugar para sentar no vagão.
O trem chega na antepenúltima estação e como eu havia imaginado surgiram lugares para sentar. Todos que estavam em pé sentam... Não sobrou lugar para mim. Chego ao destino desejado e é necessário fazer baldeação para outro trem que me deixa bem perto do trabalho. Sem dúvida o próximo trem estará lotado. Já faz duas horas que saí de casa e a maça ingerida as pressas já não é nem mais lembrança no meu estômago.
Entro no vagão pelo impulso da multidão atrás de mim. Não há lugar para segurar, mas também não há como cair, cada centímetro do piso está ocupado, assim todos juntos prosseguimos por mais quatro estações. Uma gentil senhora segura minha mochila.
É alcançada a última estação e desta vez o número de pessoas que desembarcam é o maior de todos, sou colocado para fora do trem, saio da estação e corro para o trabalho. Chego um pouco suado, procuro nos bolsos meu crachá para marcar o ponto, estou atrasado trinta
minutos...
Não acho meu crachá, deve estar na... Minha mochila! Não acredito! Esqueci com a senhora do trem! Chega minha chefe, gorda, com três tonalidades de louro no cabelo, unhas ruídas e uma cara de quem aguarda um infarto. Ela não dá nenhuma bronca, me entrega o head e me mostra meu P.A. (Ponto de Atendimento).
Começo a atendimento e a primeira ligação é de um senhor gago de 70 anos. Não consigo compreender de maneira nenhuma qual o seu problema.
Ele começa a ficar nervoso e tenho a sensação que o senhor xinga minha mãe... Depois de uma hora, desliga na minha cara.
Faço uma pausa para tomar água. No caminho até o bebedouro vejo atendentes fazendo caretas para a tela do computador ou mostrando o dedo do meio. Pego o copo, sedento por goles de água bem refrescantes, mas não tem água gelada e a água natural deveria chamar-se água quente. Volto ainda com sede para o P.A. Atendo uma jovem senhora que com muita polidez me explica o seu problema, como manda o script eu lhe informo o procedimento e a necessidade de aguardar alguns dias para que ela seja atendida. Ela, agora com outro tom de voz, persiste na urgência de ter aquele problema resolvido, mais uma vez eu lhe falo sobre o procedimento. Ela se exalta, deixando para trás a imagem de moça educada. Faz ameaça, pronuncia alguns xingamentos que desconheço e por fim insiste em falar com a supervisão.
Em passos fúnebres a minha supervisora se aproxima do meu P.A. Com sua voz rouca e intimidadora ela repete o procedimento para a cliente, que desta vez aceita e desliga o telefone.
Cinco minutos restam para que eu cumpra minha carga horária do dia, esta será a última ligação. A cliente é uma senhora muito simpática que deseja tirar algumas dúvidas... Já faz vinte minutos que estamos conversando. Ela pergunta sobre os produtos e por vezes faz com que eu repita três vezes a mesma informação. Quarenta minutos depois do fim do expediente eu consigo sair. Minha supervisora fica esbravejando que não me pagarão hora extra.
Estou atrasado para a faculdade e mesmo sem meu material de estudo preciso marcar presença. Chego na sala e o professor esta divagando sobre a cultura russa, me olha com olhar de desaprovação pelo atraso.
Hoje a aula é de literatura estrangeira e o livro que esqueci sobre a mesa era justamente o de Dostoievski.
Meus olhos pesam durante a aula, mas o mundo de Raskólnikov é mais encantador que o sono e me esforço para permanecer atento. O professor já proferiu as considerações finais, relembra a data de entrega do trabalho e de um modo solene finaliza a aula.
Meio acordado e meio dormindo, retorno para casa pensando nas contrariedades do dia, no fato de morar no extremo da cidade – o que me deixa tão distante de tudo – nas poucas horas de sono, no cansaço físico e mental. Acho que estou sorrindo, talvez porque hoje é sexta.
Amanhã durmo um pouco mais ou porque nesta equação toda acredito ser vencedor, sou estudante de cidade grande! Alguém bate no meu ombro, o coletivo chegou no ponto final. Olho no relógio... é quase meia noite. Volto a pé os três pontos que passei. Chego em casa e vejo um bilhete de mamãe dizendo que meu prato está no microondas e que uma senhora ligou informando que está com minha mochila, ela deixou um número para contato. Amanhã vejo isso. Vou dormir, já passa da hora desse dia acabar. Jogo-me na cama esquecendo de tirar o sapato e de apagar a luz do quarto.
Imagens:
http://www.radiozfm.org/portalz/images/stories/estudio/pessoas/trem_cptm.jpg
http://hypedesire.blogtv.uol.com.br/img/image/HypeDesire/2009/abril/relogio_dali.jpg
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcEy7CNgofIEoPa9B5y_QxIo2pSKZMkjPOtFMx3PUBA6XV6XdezbbvD9dW1-mny0uQkPIOo8fiUu-_eJBghuNLLkDzjPYifCJI15dlVw6X82FnncwYs0U5uKx7Fqko5Xy6cw8Yo_FhfK8s/s1600/maca-mordida.jpg
Que dia exaustivo hein! hehe
ResponderExcluirRetratou muito bem a rotina dos paulistanos que estão sempre correndo contra o tempo, moram longe do trabalho, vão expremidos no nosso insatisfatório transporte público e ainda vem o chefe. Com tudo isso é normal esquecer, um livro a mochila e o ponto em que deveria ter descido. Que memória resiste a tantas coisas para se lembrar?
Cômico, se não fosse trágico! rsrsrs
ResponderExcluirAmei!