quinta-feira, 7 de junho de 2012

Bernardo

Essa pode ser minha última conversa. Não sei se foi um efeito dos remédios, mas estou eufórico, de repente me deu uma disposição pra falar. Eu lhe incomodo? São apenas alguns minutos... Ah! Que bom! Você é muito gentil, deve estar acostumada com o último pedido de um moribundo. Não, não se incomode, eu sei da gravidade do meu caso e fico feliz em estar nos meus últimos dias lúcido. Não sou o tipo de paciente desmotivado, juro que teria esperança se ela existisse para o meu quadro. Que bom que você sorriu, eu quero um papo leve, nada fúnebre...

Sabe... Eu poderia apostar que morreria mais jovem. Com HIV obviamente, mas as coisas são tão diferentes das nossas previsões, né? Eu sempre fui um cara de criar estatísticas, sempre achei que pudesse medir, comparar e quem sabe criar um parâmetro para prever uma porrada de coisas. Talvez porque fiz exatas né?! Cálculos! Eu sempre trabalhei com cálculos e a matemática é precisa. É bem possível que por isso que eu nunca soube lidar com pessoas, pessoas são imprecisas... Ai, é necessário mesmo me virar na cama de novo? Esses cortes foram grandes ein... Esses caras gostam de sangue, não ria, agora eu falo sério!

Tenho não! Aliás, todo mundo tem família, mas quando as pessoas não se vêem por tanto tempo, acho que deixam de ser consanguíneas. Deveria ter apostado na previdência privada, mas essa mania que a morte ia bater logo a minha porta... Porque AIDS? Grupo de risco, como eles chamam, faço parte do grupo de risco. Sempre me deitei com meninos e meninas. Não que eu não quisesse, mas não me casei porque sempre achei que não fosse algo para gays. Não! Com meninas foi deslize, acaso, sempre gostei de garotos.

Mas não pense que fui um vadio. Depois de tudo que falei você deve pensar que fui muito promiscuo, por um tempo talvez, em determinada época, mas quem nunca foi? Eu também trabalhei muito, estudei pra caramba... Só acho que deveria ter estudado mais do que trabalhei e como diz a canção ter visto mais vezes o sol se pôr... Pega para mim aquele livro que está naquela instante. Obrigado. Conhece? Já leu? Isso! O autor é baiano, talvez conheça outros títulos dele, alguns até viraram novela. Bom, mas eu trouxe esse livro porque ele fala de tudo o que eu já não tenho mais... Fala de liberdade! Você acha que eu estou resignado né? Ainda grita em mim alguma revolta, eu queria tanto ver mais uma vez o mar, sentir aquele cheiro de maresia, olhar ao redor e vê que tudo é tão grande...

Não se preocupe, eu não vou chorar. Eu trocaria o Capitães por uma companhia, não nego. Mas essa solidão aqui é culpa minha mesmo sabe... Eu não cultivei amizades no meu jardim, sempre acreditei que sentimentos nos deixam fracos. É verdade, eu tenho sim uma porção de colegas, recebi algumas visitas, mas tudo meio comercial. Ninguém totalmente desinteressado, todos que vieram foi por educação, afinal vai que eu sobreviva! Volto para o trabalho e posso me vingar de quem não veio me visitar. Eu não sou engraçado não, gosto mesmo de ridicularizar algumas situações.

Eu tenho fé sim, mas o meu senso de justiça é maior. Se a vida é coisa boa, outros tantos têm mais méritos para permanecerem nela do que eu... E se for algo ruim, eu já tenho créditos suficientes para partir de imediato. Qualquer que seja a opção, nada me comove. Já me fiz de vitima algumas vezes, em outras de algoz, mas esse foi o único equilíbrio que encontrei na vida, a beira da morte, saber que não sou inocente e muito menos culpado. Talvez, isso é que o chamam de maturidade? Porque ela demorou tanto para chegar?

Quando eu era novo, comprei com louvor a ideia que eu precisava conquistar uma poção de coisas para me sentir realizado. Faculdade, bom emprego, carro, casa e tudo que o sistema, através de uma linda propaganda, pudesse me propor. Ao contrário da maioria, eu consegui! Carro, casa, faculdade, emprego bom... Só que ninguém nunca me ensinou para que serve tudo isso... Você havia me perguntado da minha família, foi nesse meio tempo que ela foi ficando no caminho. Minha mãe logo se foi, meu pai não tem estrutura para entender um filho diferente dele e meus irmãos se espalharam pelo mundo.

Ah! Eu me diverti também. Coisas de jovens: baladas, sexo, drogas e rock n' roll. O erro foi não ter mantido quem era bom pra mim... Deixei tanta gente escorrer pelos dedos. Ah! Viajei bastante também, sempre gostei de conhecer lugares novos, novos rostos, novas praias, novas montanhas... Você acha? Não me peça pra falar do passado, ou não vou deixar você trabalhar o resto da tarde... Eu amo relembrar! Até porque a gente sempre pinta o que já passou de forma mais colorida, mais alegre e mais leve. O meu passado não traz borrões, apenas traços leves e precisos. Eu gosto de ver o passado como o melhor que poderia ter acontecido, por isso lembrar dele me faz bem.

Você já vai? Ah! Que pena! Não tem como nem deixar essa porta aberta? Para eu ver quem passa no corredor?... Ok, Ok... Você é muito durona e não ria tanto assim de mim! Vou ficar bem, esqueceu que tenho essa companhia aqui? Termino esse livro hoje e espero que alguém me traga outro!


Voltou? Não resistiu de tanta saudade de mim né? Outra visita? Veja se minha cara ta de muito doente? Assim eles vão embora mais rápido né? Não se pode nem mais ler nesse hospital... Manda esses chatos entrarem.

IMAGEM: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiApVssPJIzrB2iGBos0QI29_i1NSWWUP15XH0SJwHNAaOuFMdGgzLzqauD7ZRZI24RNzrcShwqFZOotR8ItPz4KS7K95nAVl7NPAPi7g4PmgpZEKghr_WGMvj_RfE3EWHGaxzNZ8dYIqM/s320/cadeira+ao+lado+da+cama.jpg

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