sábado, 4 de dezembro de 2010

Vida entre Letras

Quando era criança foi lhe apresentado um mundo novo. Lugar em que ele poderia refugiar-se da dura realidade de sua pequena vida. Uma orfandade prematura que não encontrava compreensão em seus olhos de seis anos de idade. Seu tio Otto tratou de lhe apresentar um canto em que tudo era possível, sonhos não tinham o gosto de distância ou utopia, mas sim de desafio.

O primeiro universo que chegou em suas mãos, sem dúvida, não foi escrito para crianças de sua idade. No entanto, o tio Otto prometeu ajudá-lo. Retirou principalmente as páginas que pela moral e bons costumes não deveriam ser lidas e deixou Alfeu somente com as páginas que narravam aventuras dos Capitães da Areia.


Ele correu com Pedro Bala, fez reza com Pirulito e foi conhecer o som dos atabaques com João Grande. O desejo do menino pelo manjar literário era alegremente alimentado pelo tio Otto. Grande euforia manifestou este quando conseguiu a coleção de Tolkien e entregou três calhamaços com a saga de Senhor dos Anéis. Alfeu tornou-se o melhor amigo de Frodo e juntamente com San desbravaram a Terra Media e levaram o anel para destruição.

Os anos se passavam e mesmo estando na escola, se relacionando com outras crianças, os melhores amigos de Alfeu eram sempre os livros. Em sua solidão de menino, em que toda a família se resumia a um tio, Alfeu era feliz.

Completou 16 anos e viu a sombra da saudade visitar novamente sua casa. O tio Otto teve uma pneumonia e faleceu enquanto o sobrinho relia Cem Anos de Solidão ao pé de sua cama. Alfeu faltou duas semanas a escola, trancado em casa revezando entre lágrimas e letras. O que não durou muito, porque logo amigos da vizinhança – pois o tio Otto era muito querido – trataram de empregar o garoto na venda da esquina e reorganizar sua vida. Dona Gilca, lavadeira que morava na casa ao lado, era uma das que sempre verificava se o menino estava se alimentando e freqüentando as aulas.

Alfeu andava em farrapos, mas todos os cantos da casa estavam repletos de livros, quase todo o seu salário era utilizado adquirir novas narrativas. Os anos não paravam e o guri cresceu em estatura e conhecimento. Mesmo adulto andava sempre distraído pensando em histórias...

Em uma tarde de novembro, enquanto descarregava tomates, ele percebeu que havia histórias que gostaria de ter lido, mas não as encontravam escritas. Ao final deste dia, quando chegou em casa, descobriu o prazer de ser deus de novos mundos. Ele definia o destinos de personagens, as vezes os fazia sorrir e outras chorar. Alfeu dedicava-se agora a escrita e sempre andava com um bloco de papel no bolso.

Os dias se passavam e crescia em Alfeu idéias literárias, porém faltava o realismo das horas na venda, dos abraços nas moças e dos banhos na praia. Alfeu percebeu que necessitava viver para escrever e de mochila nas costas partiu para o nordeste em busca de novos temas.

Ele se pintou de palhaço para narrar um circo, aprendeu a cozinhar para escrever um drama que se passava em um restaurante. Alfeu tornou-se cantor para descrever uma divertida boate. Por fim, sentiu falta de uma narração que falasse de um aspecto importantíssimo da vida, o seu ponto final, a morte! Pensou durante meses sobre o que escrever... Ele bem sabia o que sentia os que ficavam, mas e os que partiam? Debruçou-se anos sobre o tema, sem sucesso. Voltou a capital, parou de escrever, casou-se com Merice, teve quatro filhos e um neto.

Aos cinqüenta anos de idade foi acometido por pneumonia, assim como o tio Otto, igualmente solicitou que lessem Cem Anos de Solidão. Alfeu havia incutido nos filhos a mesma sede de leitura que recebeu do tio Otto. No entanto, nunca havia revelado a eles a própria obra, escrita durante décadas. Aguardou o momento oportuno, a ultima página do livre de Gabriel Garcia Marques, entregou aos filhos o seu legado. Foi nesse instante que a percebeu incompleta e que chegava o momento de concluí-la, a hora de descrever a morte como quem a vive. Sorriu aos filhos com satisfação e como bom curioso que era suspirou profundo em busca de novas histórias.

IMAGEM: http://www.emich.edu/english/gsp/writing.gif

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