domingo, 4 de dezembro de 2011

Desengano

O dia amanheceu quente. Desde as primeiras horas da manhã o sol aquecia como em pleno meio-dia. O telefone insistia em perturbar meu sono e cedendo a sua súplica decidi atendê-lo. A voz familiar que me interpelava, pedia um encontro, uma visita ainda pela manhã. Reclamação que minha fala trêmula não soube recusar. Talvez fizesse parte de algum protocolo que eu desconhecia, mas porque segui-lo? Nossos encontros furtivos não seguiam qualquer regra... O que era necessário para rematar aquele engano? Vidas que se cruzaram sem propósito, almas que obraram para estancarem mutuamente.

Segui com toda a falta de ânimo que consegui, não apenas pelo dia quente, mas pelo desejo de me desencontrar do combinado. Rumei como quem segue para o palco, ensaiando para minha atuação, torcendo para que o coletivo demorasse mais que o previsto, que o metro estivesse circulando com velocidade reduzida e maior tempo de parada. Para me tranquilizar tentei lembrar de algum momento bom, alguma alegria guardada na memória, uma felicidade partilhada, mas não consegui. A nossa história sem personalidade terminava sem deixar lembranças boas ou ruins, foi apenas um tempo perdido, uma distração à toa.

Nos encontramos no ponto combinado, seguimos até seu prédio sem comentários ou explicações. Ele pareceu mais gordo do que eu me recordava, cabelos molhados, um perfume barato que não condizia com sua posição social. Parecia tenso, mãos suadas dentro do bolso da calça de moletom. Com um esforço tremendo sorriu, avisando que havíamos chegado no andar de seu apartamento. Descemos atrapalhadamente, sem saber quem deveria segurar a porta do elevador. Retirou do bolso o chaveiro repleto de chaves presas a uma miniatura de Ferrari.

Junto com a porta do apartamento, abriu sobre meus olhos um leque de situações iguais aquela. Histórias que eu não sabia de onde brotaram ou para onde rumavam, lembrei de quando trocamos telefones na ponte aérea Rio - São Paulo, da primeira vez que visitei esse prédio e de quando soube da existência de sua esposa. Na mesa de centro em sua sala ele já havia colocado um copo com vodca, meses nos encontrando e ele não sabia que eu odiava vodca. Tomei em poucos goles a bebida amarga na esperança da embriaguez, bobagem... Fiquei mais sóbria, na torcida para que o tempo corresse com pressa e logo chegasse à hora da despedida.

Sentou-se ao meu lado, seus dedos tocaram minha pele e tive um enjôo que não vinha das vísceras. Nesse instante se abriram as cortinas e subi ao palco, usando de toda minha veia artística, torcendo para que ele não me chamasse pelo nome de batismo, para que não me chamasse de volta à vida, eu precisava atuar para não desmoronar diante dos holofotes. O suplicio teve fim. Não houve coito, minha face mentiu, mas não o resto de meu corpo, eu estava desumanizada demais para forjar de tal forma o prazer. Desviei de um beijo, fui ao banheiro lavar meu corpo na esperança de que ao menos um pouco da limpeza alcançasse a alma. Lembrei de quando acreditava que seria diferente, mas não foi! Troquei-me e pedi a grana, avisando-o que este era nosso ultimo encontro, que não faríamos mais negócios e que estávamos desfazendo qualquer engano. Ele, bêbado, não deve ter me dado atenção, sentindo a seriedade de minha frase apenas quando não atendi mais os seus telefonemas.

Já na rua, seguindo por caminhos tortuosos, o nó em minha garganta me pedia lágrimas que não havia mais em meus olhos. Meu coração ressequido não encontrava respostas na razão e durante horas coloquei minhas pernas em movimento pelas ruas da cidade na tentativa de calar vozes questionadoras. Depois de algum tempo a exaltação passou, talvez tenha sido o calor culpado ou um efeito tardio da vodca. Vi-me no centro da cidade, sentada em uma praça, olhando crianças que brincavam absurdamente, sem pensarem o quanto a vida podia ser complicada, o quanto nossas ações poderiam estar sob constante engano.

O celular tocou, era mais alguém que pedia a embalagem. O problema com Marcos não foi por eu ser mal paga e sim porque de inicio acreditei que ele não precisasse pagar. Enganei-me, acreditando que aquele era o ponto final da vida dissoluta, no entanto, não foi. O celular insistia e a bola das crianças saltitava para todo o canto, o celular tocava e as crianças corriam. Eu apertava o celular na mão em uma confusão dos sentidos, pensando que alguém deveria atendê-lo, outro alguém, alguém que não fosse eu. Levantei em direção a saída da praça. No caminho encontrei uma lixeira e atirei o celular, escarrei sobre ele, algumas senhoras assistiam a cena sem nada entender.

IMAGEM:
Água Agitada, Gustav Klimt, 1898
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOUv9jWmW02jxoYQ8u9V_dMWNQUAkO5U9QVSQqcJeP55mXsC4ez-WewDatPTzdG3rNe-FZbWaMxmVscntjJU1YLsigLk9EtNyEonDNGEQxIxrMAPIIutEhDW7Pgxd-VshDRKSLjp5hfX8j/s1600/%C3%81gua+Agitada,+Klimt.jpg

Um comentário:

  1. Profundo...me lembrou aquela música da Pitty - Água contida:

    "Então sai, deixa correr
    Toda a água contida
    Então sai, deixa correr
    Toda mágoa velada é água parada
    E uma hora transborda"

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